Quem, em plena e sã consciência, busca encontrar problemas? Ainda mais por que nem é preciso fazer muito esforço: os problemas possuem uma habilidade especial para aparecer em nossas vidas, quando menos esperamos.
Mas com problemas de pesquisa parece que ocorre exatamente o contrário aos problemas do dia a dia, até mesmo por existe uma grande diferença entre estes dois tipos de problema. Por mais que você busque, eles parecem fugir de você. Mais que a escolha de um tema de pesquisa, é a definição do problema que parecer ser uma das etapas mais difíceis na elaboração de um projeto de pesquisa.
Frequentemente, jovens pesquisadores ficam emperrados neste passo, “queimando” tempo precioso e comprometendo outras etapas de uma pesquisa, incluindo o trabalho de campo e a coleta de dados. Cláudio de Moura e Castro, em seu livro A Prática da Pesquisa, argumenta que aprender a fazer pesquisa, ao contrário do que recomendam as teorias da aprendizagem, começa justamente pelo passo mais difícil.
Ainda segundo este autor, se colocássemos num gráfico de linha de tempo o esforço intelectual dedicado na realização de uma pesquisa, o resultado seria a “teoria da baleia”: uma curva pronunciada do início para o meio do tempo disponível, seguida de uma queda abrupta, na exiguidade dos prazos disponíveis. O que esta “baleia” evidencia é a dificuldade da etapa inicial da pesquisa, a das definições.
De certa forma este aperto é previsível. Relembrando, um problema de pesquisa pode ser definido em termos simples, como uma lacuna no conhecimento existente, algo que deveríamos saber, mas que ainda não sabemos. Portanto, o domínio de uma certa área do conhecimento é um requisito prévio; somente depois disso, um pesquisador poderá identificar aqueles pontos que ainda estão por resolver.
Dito isso, existem algumas recomendações para que você possa encontrar problemas de pesquisa. Tomamos como base as orientações de Booth, Colomb e Williams, apresentados no livro “A arte da Pesquisa”, mas que na tradução espanhola tem um apelo maior: “Como se tornar um pesquisador competente”.
1. Explorar as características do tema
Mais além da mera descrição ou da identificação de semelhanças e diferenças entre duas situações, uma pesquisa deve ser movida por perguntas, indagações cujas respostas sejam suficientemente significativas para mudar a forma como pensamos sobre um certo aspecto da realidade.
Portanto, ao identificar um tema de pesquisa, você deve bombardeá-lo de perguntas, examinando suas características. Estas indagações podem ser guiadas pelas perguntas essenciais: o quê, quem, como, quando, onde, por quê?
Ah, como base para os exemplos, vou utilizar o tema geral de um artigo científico que escrevi há algum tempo, mas pelo qual tenho muita simpatia: a cobertura jornalística da Missão Centenário da Agência Espacial Brasileira, com a ida do primeiro astronauta brasileiro, Marcos Pontes, à Estação Espacial Internacional.
Partes e totalidade
Busque identificar como os diversos componentes de um tema se relacionam entre si.
Como são representados os diferentes personagens e instituições envolvidos na Missão? Houve diferença na forma como diferentes meios de comunicação cobriram o evento?
Ou então faça perguntas que situem seu tema dentro de um contexto mais amplo.
Como a cobertura da Missão Centenário se relaciona com outras matérias de divulgação científica publicadas no mesmo período? Como ela se situa na estratégia mais ampla de comunicação pública da Agência Espacial?
Histórico e mudanças
Tente entender seu tema como algo dinâmico, que muda com o tempo.
Houve alguma mudança de tratamento do acontecimento, ao longo das várias etapas da Missão, isto é, desde a fase de preparação, até o retorno? Conforme a viagem se desenrolou, houve algum tipo de mudança na cobertura jornalística realizada?
Tente situar seu tema como um episódio de um acontecimento maior.
Qual a influência de situações externas, como a Copa do Mundo de 2006 as eleições presidenciais, sobre um relato de cunho nacionalista?
2. Ler, ler, ler
Sem dúvida, esta não é sequer uma recomendação, mas uma obrigação. Através da leitura e do estudo da revisão bibliográfica de um assunto, você não somente se apropriará do conhecimento em questão, mas poderá inferir também quais são as lacunas.
A leitura atenta e crítica de um artigo científico poderá lhe levar a questionamentos, perguntas que podem se transformar em problemas de pesquisa. Já em relatórios de conclusão, como são as teses, dissertações e monografias, é praxe que nas considerações finais o autor faça uma avaliação de sua pesquisa, assinalando as questões ainda não resolvidas, sugerindo novas linhas de investigação.
Sala de leitura da Biblioteca Central de Liverpool. Quantos problemas de pesquisa não estão escondidos ali. Foto de Michael D. Beckwith.
3. Pedir ajuda
Se a dificuldade principal na identificação de um problema de pesquisa é o domínio de uma área do conhecimento, outra rota de ação é recorrer a quem já possui propriedade. Se através da leitura você está buscando alcançar um nível de especialização suficiente para identificar aquilo que ainda não se sabe, solicitar o auxílio de um especialista é ir diretamente ao ponto.
Novamente sendo Moura e Castro, a escolha de temas e problemas é o que diferencia os grandes centros de pesquisa dos demais, na medida que nestas instituições “paira um clima de opinião mais nítido e bem informado acerca dos temas que, naquele momento, é oportuno pesquisar”. Tal fato estaria relacionado com uma descoberta do sociólogo da ciência Robert K. Merton: um terço dos alunos de cientistas ganhadores do prêmio Nobel também haviam sido premiados, sendo o diferencial a sensibilidade na identificação dos problemas mais interessantes e promissores.
É preciso levar em conta, porém, o acesso. Nem sempre pesquisadores possuem a disposição e tempo para atenderem este tipo de questionamento básico. Se você tiver uma resposta através do correio eletrônico já é uma grande conquista; não espere um encontro pessoal. Além disso, como o meio acadêmico tem seu lado competitivo, este tipo de informação pode não ser facilmente compartilhada.
Já uma forma de superar a dificuldade de acesso é buscando ajuda indireta. Pesquise na plataformaLattes o projeto de pesquisa (ou projetos) que este pesquisador ou programa de pós-graduação está desenvolvendo na atualidade. Os objetivos enunciados nestes projetos são indicativos dos problemas de pesquisa desta área.
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Estas são suas mãozinhas de iniciante, pedindo ajuda do sábio orientador. Foto de Antonella Beccaria.
4. Escrever
Pode não parecer intuitivo, porém mais além de seu embasamento teórico, você também pode encontrar problemas de pesquisa em seu próprio texto.
Como assim? Basicamente é a mesma ideia da leitura, aplicada agora a uma versão inicial de seu próprio texto. Ao iniciar uma primeira versão de sua revisão bibliográfica, você já estabelecerá um diálogo intelectual com seus autores, contrapondo, exemplificando, explorando ideias e conceitos. E principalmente nos parágrafos finais, ao realizar uma síntese do que foi discutido e estudado, você estará expondo quais são as lacunas deste conhecimento.
O que pode parecer estranho é começar a escrever antes de ter um problema definido. De fato, as etapas de uma pesquisa geralmente são descritas de forma linear nos livros de metodologia científica. Os esquemas e diagramas utilizados, com setas ligando um passo a outro reforçam esta concepção de linearidade, algo que está longe da realidade.
Na prática a pesquisa é um processo iterativo, onde os conhecimentos e experiência adquiridas numa etapa mais avançada levam a uma revisão dos passos anteriores. Neste sentido, o processo seria melhor representado por uma espiral do que por uma linha contínua, reta.
E de acordo com esta característica, o ato consciente, ativo de escrever irá lhe proporcionar uma nova visão sobre o assunto em questão e, possivelmente, à identificação de problemas de pesquisa.
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Colocar as ideias no papel (ou na tela) é um exercício de reordenação das ideias. Foto de Ramiro Ramirez.
5. Utilizar problemas padrão
Finalmente, uma possibilidade complementar é tomar proveito do fato do ditado “não há nada de novo debaixo do Sol”. Se na literatura, isto significa que todos os roteiros e argumentos básicos, num plano abstrato, já foram explorados, no campo da ciência reflete-se em que existe um número limitado de problemas de pesquisa. Estes são os chamados problemas padrão.
Repetindo, são situações gerais, abstratas, que logo devem ser aplicadas ao contexto específico de um determinado tema. Segundo nossos autores de referência, estes problemas padrão são o reflexo de relações de oposição. A premissa básica aqui é a de que, ao contradizer uma ideia aceita de forma generalizada, ao afirmar que este conhecimento é incompleto ou incorreto, você estará criando uma situação problema (no sentido de pesquisa, naturalmente).
Destaco aqui a forma mais simples da taxonomia apresentada por Booth, Colomb e Williams, a contradição de categorias, que pode ser abordada por pesquisadores iniciantes e intermediários. A ideia aqui é contradizer como seu tema é classificado, segundo a aceitação da maioria.
Por exemplo, e retornando a nosso exemplo astronáutico, poderíamos perguntar se a cobertura da viagem espacial do primeiro astronauta brasileiro se classifica de fato como divulgação científica, isto é, como forma de explicar a ciência e a tecnologia.
Outras relação de contradição seria a parte-todo (a cobertura da Missão recebeu algum tipo de tratamento especial, comparada à s notícias científicas que um meio publica geralmente?) e as de causa-efeito (o tratamento dado à Missão favorece a compreensão a respeito dos objetivos do programa espacial brasileiro?)
A vantagem de saber encontrar problemas
Alguém poderia se perguntar: se um orientador já tem conhecimento e experiência, por que ele simplesmente não diz qual é o problema de pesquisa? Seria muito mais rápido, cômodo e não prejudicaria o andamento do resto da pesquisa.
Porém, isto seria tirar completamente o sentido de se realizar uma pesquisa em primeiro lugar. E não somente por conceitos como “autonomia”, “maturidade intelectual”, “pensamento crítico”, que são objetivos do ensino superior.
Mas também por que identificar problemas é uma competência altamente desejável, mais além da vida universitária e acadêmica. Vejamos o que Booth, Colomb e Williams têm a dizer sobre o assunto:
Pode parecer que tudo isto não tenha conexão com o mundo real, mas não é assim. Os problemas de pesquisa no mundo geralmente encontram-se estruturados exatamente como o estão no mundo acadêmico. Nos negócios e no governo, nas leis e medicina, nenhuma habilidade é mais valorizada que a capacidade de reconhecer um problema importante de um cliente, de seu chefe ou do público e logo, de colocá-lo de uma forma que convença aos leitores de que o problema que descobriu é importante para eles e que encontrou sua solução.
A tarefa que você realiza atualmente é sua melhor oportunidade para preparar-se para o tipo de trabalho, que deverá fazer, pelo menos se espera prosperar num mundo que depende não somente de resolver problemas, mas de encontrá-los. Com esse objetivo, nenhuma habilidade é mais útil que a capacidade para reconhecer e articular um problema de forma clara e concisa, uma capacidade que em muitos aspectos é mais importante que resolvê-los. Se você pode fazer isso em uma aula de chinês medieval, também poderá fazê-lo nos escritórios de uma empresa ou do governo.
Referências
MOURA E CASTRO, Claudio. A prática da pesquisa. 2 ed. São Paulo: Pearson Prentice-Hall, 2006.
BOOTH, Wayne C.; COLOMBS, Gregory G.; WILLIAMS, Joseph M. Cómo convertirse en un hábil investigador. Barcelona: Gedisa, 2001 (Herramientas Universitarias).