Lendo o título deste post e, conhecendo as dificuldades de se fazer ciência no Brasil, com recursos financeiros escassos, excesso de burocracia, o fantasma do produtivismo acadêmico assombrando os laboratórios de pesquisa, possivelmente você imaginou que eu ira falar da persistência e da coragem do fidalgo manchego, disposto a enfrentar seus moinhos de vento.
Contudo, para ser mais preciso não é o personagem em si, mas a apresentação do clássico Dom Quixote de La Mancha que nos traz algumas orientações para a escrita acadêmica eficaz.
Especificamente, como Miguel de Cervantes questiona práticas que frequentemente tornam dissertações, teses e artigos científicos em textos inacessíveis para o leitor comum.
Entre as normas acadêmicas e a falta de claridade
No prólogo, escrito na primeira pessoa, Cervantes, lamenta-se, indeciso se publicará a obra à qual dedicou tanto tempo ou não. Sua principal preocupação é o fato do livro que ele terminou de escrever não estar no padrão, por assim, dizer dos outros livros da época.

Cervantes escrevendo o prólogo do “Quixote”, de Luis Paret y Alcázar (c. 1797).
É neste momento que chega um amigo, que lhe incentiva a mostrar ao mundo o seu livro. Diante da dúvida do autor, este outro lhe pergunta que falhas são estas. A resposta:
Pobre de conceitos, e alheia a toda a erudição e doutrina, sem notas às margens, nem comentários no fim do livro , como vejo que estão por aí muitos outros livros (ainda que sejam fabulosos e profanos).
O companheiro, “homem bem entendido e espirituoso” não se deixa desanimar e insiste na publicação. Para ele, estas seriam “coisas de tão pequena importância e tão fáceis de remediar”. Ao que o autor responde:
Dizei-me: qual é o modo por que pensais que hei de encher o vazio do meu temor, e trazer a lúcida claridade ao escuro caos de minha confusão?
O providencial conselheiro nos mostra então como os textos eruditos,e aqui traçamos o paralelo com a escrita acadêmica eficaz, podem se esconder sua superficialidade e falta de conteúdo.
Por detrás de uma série de convenções (ABNT, olá?), que cumprem a função de criar uma imagem de sabedoria, a tal “claridade”.
Temos então uma verdadeira anti-aula de escrita acadêmica, particularmente o uso de normas e convenções adotadas. Sobre epígrafes para iniciar o livro, recomenda que ele mesmo as redija e depois atribua a autoria a alguém famoso, de sua preferência. Em relação as notas de rodapé e outros comentários, o amigo recomenda utilizar frases que “saibais de memória ou que pelo menos vos dê procurá-las muito pouco trabalho”, além de incluir notas explicativas genéricas, beirando o óbvio. E por fim, sobre a bibliografia, a sugestão é copiá-la de outros livros, confiando em “leitores tão bons e ingênuos que acreditem na verdade de vosso catálogo”. Ou seja, são dicas de escrita acadêmica, às avessas, por não dizer antiética.
Mas depois de tudo, o amigo dá um giro de 180 graus, para afirmar então: nenhuma de suas recomendações é necessária. Pelo contrário, tudo o que ele recomendou não passa de um conjunto de estratagemas, de modismos, de firulas estilísticas que proporcionam um “ar” de sabedoria do que o texto realmente possui.
Eis a genialidade de Cervantes, inaugurando o romance moderno com a multiplicidade de vozes e de olhares do narrador, com sua subjetividade. O que acabamos de presenciar, e nos tempos de hoje parece que é preciso escrever em letras garrafais, é um jogo de ironia. Nele, Cervantes, que logicamente é o autor e o amigo ao mesmo tempo, critica as tradições literárias de sua época.
Mais do que isso, ele também anuncia como será o texto dali em diante, conforme recomenda seu amigo-conselhereiro:
O que precisais é de procurar que a vossa história se apresente em público escrita em estilo significativo, com palavras honestas e bem colocadas, sonoras e festivas em grande abastança, pintando em tudo quanto for possível a vossa intenção, fazendo entender os vossos conceitos sem os tornar intricados, nem obscuros. Procurai também que, quando ler vosso livro, o melancólico se alegre e solte uma risada, que o risonho quase endoideça de prazer, o simples não se enfade, o discreto se admire da vossa invenção, o grave a não despreze, nem o prudente deixe de gabala. […]. Se conseguirdes fazer quanto vos digo, não tereis feito pouco.
Realmente, Dom Quixote cumpre todos estes enunciados do prólogo, tornando-se a obra imortal que é.
Aplicando à escrita acadêmica eficaz
Para nós, pesquisadores, professores, alunos da pós-graduação podemos aproveitar estas lições e aplicá-las à escrita acadêmica eficaz, tendo objetivo que o texto, “como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo, e discreto que se possa imaginar”.
- Não podemos depender menos de convenções como citações de fachada e notas de rodapé que contribuem pouco ou nada para o texto propriamente dito?
- Não podemos fazer entender nossos “conceitos sem os tornar intricados, nem obscuros”?
- Por que utilizar tantos jargões? O que falar das orações coordenadas, em frases intermináveis, que levam ao inevitável enfado do leitor?
- Não estamos sendo “aborrecidos de muita gente”, que afinal deveriam se beneficiar dos resultados de nossas pesquisas?
Que estas indagações se transformem em prática de uma escrita acadêmica mais clara e acessível!
Referência
Para esse texto usei a tradução de Francisco Lopes de Azevedo de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho, o Conde de Azevedo e de Antônio Feliciano de Castilho (Conde de Castilho), na edição Ebooks Brasil, de 2005. É fácil de encontrar.
Mas Dom Quixote está disponível em domínio público.