IA como ferramenta de auxílio à escrita Publicado: 13 de março de 2025Em: IA na EducaçãoTags: inteligência artificial Imagem: suntorng son Publicado originalmente em IAEdPraxis: Caminhos Inteligentes para a Educação, em 13 de março de 2025 No distante ano de 1987, a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) tomou uma decisão que reverbera até os dias de hoje. Ao elaborar um modelo de vestibular próprio, a redação se tornou o principal elemento de avaliação dos candidatos do processo seletivo. A justificativa: o argumento de que a capacidade de articular ideias de forma clara, coerente e crítica constitui um indicador de competência intelectual, independente da área de conhecimento. De lá para cá, o modelo da redação enquanto expressão de pensamento crítico e capacidade de argumentação influenciou diversas instituições e seus processos, incluindo o ENEM. Mas tal peso da escrita vai além de ser um critério de seleção. No mundo atual, marcado pela onipresença da comunicação, escrever é uma habilidade fundamental. Com o advento do texto generativo e suas possibilidades, arrisco dizer que uma escrita impecável – bem estruturada, livre de erros – será um critério de distinção e credibilidade pessoal e profissional, uma linha divisória de status pela qual julgaremos e seremos julgados. Entrando em cena, os chats de Inteligência Artificial, como ChatGPT, Claude e Gemini, representam um avanço significativo em relação às ferramentas tradicionais de auxílio à escrita. Diferentemente de dicionários ou corretores ortográficos convencionais e combinando bancos de dados linguísticos com algoritmos de processamento de linguagem natural, estes sistemas são capazes de entender o contexto e de oferecer sugestões com maior nuance e sutileza. Mais além, podem estabelecer um diálogo sobre o processo de escrita, ajudando na estruturação e argumentação de um texto. Não à toa, os processadores de texto estão começando a ser “turbinados” com IA, com recursos de ajuda que vão desde a revisão num sentido tradicional e incluindo a elaboração de rascunhos ou primeiras versões, além da paráfrase e resumo de documentos. Assim como os corretores de texto dos teclados de celular, será cada vez mais difícil não usar um assistente de escrita por IA e por isso é necessário conhecermos suas possibilidades e limitações. Um lado positivo é que as ferramentas de IA acenam para a possibilidade de uma aprendizagem ativa sobre o próprio processo de escrita. Não estando limitada a simplesmente corrigir erros, a IA pode explicar a seu usuário os critérios que embasam sugestões, permitindo uma compreensão do “porquê”, além do “o quê”. Dessa forma, as ferramentas de IA, quando entendidas como ferramentas de auxílio à escrita – e não como sua substituta – possuem um potencial de aprendizagem que pode ser explorado de diversas maneiras no contexto educacional. Em síntese… Um dicionário avançado e especializado Um dos usos mais práticos da IA Generativa para a escrita é como um dicionário avançado. Além de simplesmente fornecer definições ou listas de sinônimos, ferramentas essenciais para qualquer escritor, esses sistemas podem entender o contexto em que uma palavra é usado e sugerir alternativas mais apropriadas. Por exemplo, se um aluno-redator estiver escrevendo sobre política e pedir um sinônimo para “influência”, o sistema pode sugerir termos mais específicos como “lobby” ou “soft power”, explicando as nuances de cada termo. Para estabelecer uma analogia, seria como utilizar o dicionário de sinônimos do corretor atrelado a uma base de tradução, com uso contextual do termo, como é a plataforma Linguee. Nesse ponto, a gigantesca base de conhecimentos com as quais as IA foram treinadas superam em muito a disponibilidade de dicionários especializados e tesauro. Como consequência, há possibilidade de enriquecimento do vocabulário e de uma compreensão mais profunda das sutilezas da linguagem. Combatendo a tela em branco e “frases empacadas” É inevitável, todo escritor em algum momento se depara com um momento de paralisia. Seja por não saber como colocar as primeiras palavras numa tela em branco, isto é, de como iniciar o texto. Ou talvez pior, são as frases e parágrafos que “não saem”, que de alguma forma estão em seu pensamento, mas não se desdobram nas “palavras certas” para o momento. Com sua capacidade generativa, a IA pode ajudar a superar estes momentos de bloqueio criativo, tão caros em termos de esforço e de tempo. Ao fornecer o contexto e uma descrição aproximada do que deseja expressar, o resultado será uma ou mais sugestões para resolver o problema, incluindo diferentes formas de expressar a mesma ideia. Ethan Mollick, acadêmico e experimentador pioneiro da IA, descreve em seu livro “Co-intelligence: Living and Working with AI” (Co-Inteligência, Vivendo e Trabalhando com a IA, em tradução livre”, como o ChatGPT impactou seu processo de escrita. Sou apenas humano, e ao escrever este livro, frequentemente me encontrei paralisado. Em meus livros anteriores, uma única sentença ou parágrafo iriam me bloquear horas de escrita, conforme eu usasse minha frustração como uma desculpa para fazer uma pausa e me afastar até que a inspiração viesse. Com a IA, isto não era mais um problema […] Num instante, eu tinha um parágrafo escrito em estilo persuasivo, outro em estilo informativo, estilo narrativo e mais. Enquanto raramente utilizei qualquer texto gerado pela IA, ela me deu opções e caminhos a seguir. De forma similar, quando eu achava um parágrafo estranho, ruim, pedia a IA: melhore isto ou dê exemplos mais vívidos. O texto que ela produzia quase nunca aparece nestas páginas, mas me ajudaram a sair de dificuldades. Assistência na estruturação e argumentação do texto Além da assistência no nível de frase ou parágrafo, os chats de IA podem ajudar na estruturação dos argumentos e ideias de um texto. Como entes conversacionais, podem estabelecer um diálogo que ajude o estudante a encontrar a razão, as evidências e as ressalvas que constituem a justificativa de uma afirmação, na estrutura argumentativa. Da mesma forma, e sobretudo com as novas capacidades de raciocínio, podem ajudar a encontrar a estrutura temática do texto e o encadeamento lógico dos argumentos a ser seguido. Nesse mesmo âmbito, a identificação de falácias e falhas lógicas é uma forma avançada de correção textual, no âmbito semântico. Finalmente, podem sugerir exemplificações e dados concretos (sempre sob o risco de alucinação e necessidade de checagem) que ajudem a embasar uma determinada afirmação. Com forte relação com escrita, como destacado pelo pioneiro vestibular da UNICAMP, o fomento do pensamento crítico através da IA será tema de uma futura edição da newsletter. Revisão e edição Escrever é fácil. Tudo o que você precisa fazer é riscar as palavras erradas.Mark Twain Como qualquer manual de escrita propõe, escrever é, de fato, editar. A edição e a revisão, embora sejam fundamentais, na prática são negligenciadas por estudantes pressionados por tempo, ou não foram suficientemente aprendidas e internalizadas. Nesse sentido, as ferramentas de revisão – ortográfica e gramatical – dos processadores de texto já são úteis para evitar erros desnecessários. A IA, entretanto, acrescenta a possibilidade de identificar problemas na essência do texto, isto é, em sua coerência, coesão e estilo. Por exemplo, e a depender do prompt utilizado, a ferramenta pode sugerir onde transições mais suaves são necessárias ou quando um argumento poderia ser reforçado através da exemplificação. De fato, esta revisão textual “turbinada” é uma das aplicações da Inteligência Artificial que precede ao boom atual da IA Generativa. Como exemplo, o Grammarly, lançado em 2009, tem sido utilizado para alcançar texto mais claros, corretos e eficazes, do ponto de vista comunicacional. Cabe ressaltar que seu uso como auxiliar de escrita vai mais além dos falantes nativos do inglês – único idioma disponível no software – mas atende também a audiências internacionais, como é o caso dos pesquisadores e acadêmicos que fazem uso profissional desse idioma Exemplo de tela de avaliação de texto do Grammarly. As categorias são correção, claridade, engajamento e entrega. Contudo, a ausência de ferramentas especializadas em Língua Portuguesa nos levam ao uso de chats genéricos, com a utilização de comandos específicos, como o revisor disponível em nossa biblioteca de prompts. Uma observação importante: como está no ebook “Diretrizes para o usoético e responsável da Inteligência Artificial Generativa: um guia prático para pesquisadores”, recomenda-se que a IA seja instruída somente a apontar eventuais erros, evitando que ela realize as substituições. O motivo: a eventualidade de reescrita, com alteração de sentido e estilo do texto original. Pode-se ainda solicitar, via prompt, pedidos da explicação, por parte do chatbot, das razões pelas quais ele revisou um texto de determinada forma. A ideia é de que “o processo sempre tenha uma lógica de aprendizado e nunca de dependência”. Sinal de alerta: revisão ou escrita? Recentemente, a associação negativa dos chatbots de IA com a integridade acadêmica e o surgimento dos detectores de texto generativo como solução tecnológica trouxe um novo desdobramento para este tipo de uso: revisar texto com auxílio da IA pode ser considerado fraude ou comportamento antiético? Para a Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, a resposta é “sim”. A instituição permitiu, ao final do ano passado, que os professores proibissem o uso do Grammarly em suas políticas de uso. Em sua orientação geral, o detalhe é sutil e pode gerar confusões: estaria classificado como desonestidade acadêmica apresentar “trabalho gerado ou materialmente modificado por IA”. Nesse entendimento, ao efetivar as mudanças ortográficas, gramaticais e de construção textual, a IA estaria assumindo um papel reservado ao autor. O que pode parecer um detalhe ganha corpo conforme os serviços de revisão começam a incorporar ferramentas de paráfrase automática, ou seja, de escrita. O relato da professora que desistiu da docência em função do “texto GPT” também ressaltou que a realização de uma paráfrase demanda compreensão profunda do assunto, uma tarefa complexa. Delegá-la a IA resultaria numa escrita inconsistente e deixaria os alunos suscetíveis a acusações de “plágio”. E, sobretudo, implicaria uma compreensão superficial do próprio conteúdo. Dessa forma, conforme as linhas entre revisão e escrita se confundem, qualquer uso de auxílio baseado em IA pode ser considerada como fraudulento ou antiético – o que de certa forma é uma contrassenso. Desafios e perspectivas futuras Apesar dos possíveis benefícios, o uso de chats de IA como auxiliares de escrita apresenta desafios importantes. O primeiro, logicamente, seria a limitação do uso como ferramenta de apoio, em relação à tentação de um texto completamente automatizado. Tal autonomia deve ser desenvolvida junto aos alunos e depende, fundamentalmente, de seu nível de maturidade intelectual e emocional. Especialmente diante da “tirania da página em branco”, como nota Mollick, as pessoas irão apertar “O Botão”, isto é, vão gerar texto automático. Porém, os efeitos de escrever rascunhos ou primeiras versões são significativos. Uma primeira consequência seria limitar-se ao resultado fornecido pela IA, sem explorar outras possibilidades. O que nos leva a um segundo desafio, o comentado “paradoxo da competência” relacionado à discussão da integridade acadêmica. Mesmo tratando-se de etapas do processo de escrita (busca por sinônimos, revisão, argumentação, etc.), ao delegar estas tarefas para a máquina corre-se o risco de que o escritor em formação não as desenvolva e fique excessivamente dependente da tecnologia. Ao delegar o esforço e o trabalho árduo de se pensar sobre o que se vai escrever, a qualidade e profundidade de nosso pensamento pode ser impactada negativamente. Usar a escrita para clarificar meu pensamento ou sar o ChatGPT para escrever por mim? A mensagem satiriza a tendência de buscar atalhos tecnológicos em detrimento do esforço intelectual do processo de escrita (essa última frase foi escrita pelo ChatGPT) Por outro lado, vieses linguísticos e culturais podem estar presentes nos Grandes Modelos de Linguagem, treinados em bases de conhecimento do exterior, comprometendo a precisão dos resultados. Diante desses dilemas, uma abordagem equilibrada é minimamente necessária. Ao envolver os alunos numa reflexão, de como percebem criticamente a utilidade e a significância dos resultados, acompanhado da documentação das etapas, a atividade ganharia contornos de processo metacognitivo. Finalmente, cabe lembrar que a tecnologia – por impressionante que muitas vezes possa parecer – ainda está em seus estágios iniciais. A evolução tecnológica possivelmente nos trará assistentes de escrita mais sofisticados, em termos de estilo individual e objetivos específicos de escrita. 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